Grande proporção de territórios das cidades brasileiras apresenta formas de precariedade, urbanização incompleta ou inexistente, com índices majoritários de baixa qualidade de vida, onde os potenciais criativos e de liderança são soterrados pela pobreza, pela falta de recursos e pela ausência de oportunidades.
Segundo pesquisa publicada recentemente pela Fundação João Pinheiro, o Brasil tem um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias. Por outro lado, há 3,035 milhões de casas desocupadas por conta do valor alto do aluguel e 24,8 milhões de moradias com algum tipo de inadequação. Como, afinal, vivem estes quase 100 milhões de pessoas (considerando 3 habitantes por moradia), em sua grande parte mulheres e crianças?
Como enfrentam desafio tão cruel de não ter acesso a um teto, um bairro digno? Como enfrentam a fome e a violência cotidianas? A urgência por transformações eficazes no desenho urbano, em áreas de grande vulnerabilidade urbana e social, se traduz na necessidade de incluir na formação e qualificação de arquitetas, arquitetos e profissionais urbanos, recursos e habilidades multi, inter e transdisciplinares. É assim que, em conjunto com a formação técnica e teórica específica da profissão, poderão aprofundar seus conhecimentos nas essenciais questões de gênero e infância, dando dar melhor apoio ao trabalho em territórios vulneráveis.
Essa é a discussão provocada por “Cidade, Gênero e Infância”, publicação lançada e coeditada pela Romano Guerra e pela Pistache Editoria. Afinal, a vocação do desenho urbano é servir como instrumento de síntese entre teorias e práticas, com vistas a produzir efeitos concretos. Quando voltado para as demandas reais e prioritárias de cada território, pode contribuir para transformações positivas para as comunidades.
Para que seja possível romper o ciclo da desigualdade e as condições de vulnerabilidade, o investimento na primeira infância é ferramenta essencial. As condições dos primeiros anos de vida impactam significativamente na constituição física, psíquica e neurológica do indivíduo. Suas capacidades de desenvolvimento afetivo, cognitivo, de linguagem e de habilidades e estima, levarão sempre as marcas destes primeiros anos.
Na perspectiva da urgência de contemplarmos como prioridade absoluta a qualidade de vida das diferentes infâncias, cabe lembrar que, historicamente, as mulheres vêm
contribuindo de modo consistente para a melhoria da qualidade de vida em seus lares,
comunidades e cidades[1]. Entretanto, elas não são adequadamente reconhecidas no
planejamento e promoção de políticas públicas. Como resultado, a análise e as ações
projetadas para as cidades, serviços, equipamentos e infraestrutura falham ao não incluir as demandas e necessidades específicas das mulheres.
Conforme se enfatiza no texto do site internacional do gender-hub da ONU Women: “A
omissão às mulheres é persistente”.[2] Verificamos que, no Brasil, 85% das pessoas que cuidam de crianças pequenas são do sexo feminino. Se suas condições de vida são prejudicadas, a das crianças de quem cuidam também será afetada. E esta realidade é ainda mais grave nos territórios vulneráveis.
Uma das construções mais perenes e tristes da experiência na cidade grande é a
persistência da pobreza e do abandono de gente, que segue circulando nos faróis, nas
esquinas, debaixo dos viadutos, nos resíduos das avenidas. Estão nas ocupações, em
áreas alagáveis, em encostas, nas alças de viadutos das marginais, instáveis, insalubres, em vulnerabilidade e risco.
Esta realidade nos atravessa e coloca constante e contínua inquietação: esta experiência afetiva, emocional e constitutiva do ser como cidade, como cidadão, é um privilégio, não um direito garantido. Em tempos de mudanças e eventos climáticos extremos, os níveis de vulnerabilidade e risco se intensificam. O artefato cidade se expandiu, submetido ao paradigma dominante, cartesiano, científico e capitalista. De modo desigual, é violento, apagando memórias e pessoas, derrubando árvores, canalizando rios e córregos, asfaltando e dedicando a maior parte do espaço público a veículos motorizados. A restauração do ecossistema urbano foi definida como uma meta da Década da Restauração dos Ecossistemas (2021-2031), anunciada pela Organização das Nações Unidas.
Que a restauração contemple o ser na sua integralidade, como natureza, como parte da natureza. Neste sentido, o pensamento ancestral andino do Bem Viver (Vivir Bien)
apresenta alternativas para um mundo onde muitos mundos são possíveis, a partir da visão de “um todo”. A Pacha (Pacha Mama) traz a compreensão da necessidade de convivermos com uma multipolaridade de contradições, na busca de um equilíbrio dinâmico (sempre em transformação, nunca estático), com a complementaridade da diversidade e, finalmente, uma descolonização (do conhecimento, do imaginário, da experiência).
A comunidade do planeta está desafiada a redefinir, ou repensar, a ideia e o propósito
contidos na palavra desenvolvimento. Sem avanços civilizatórios e novos caminhos em
direção à equidade não haverá desenvolvimento. E a ideia de desenvolvimento, constituída como resultante do crescimento contínuo, é, em si, insustentável. Existem alternativas sistêmicas capazes de promover avanços civilizatórios por meio do reconhecimento dos direitos da natureza.
Estas alternativas, ao estabelecerem limites e barreiras ao extrativismo e objetificação da vida, estão sendo atacadas sem direito e chance de defesa. Só em um contexto em que a educação integral e, portanto, também ambiental não se implementou de modo universal é que uma comunidade em escala global convive com a vulnerabilidade e vive entre tantos riscos.
A experiência de estar em lugares distintos, distantes, diversos, sujeitos a vulnerabilidades múltiplas e, ainda assim, refúgio de tanta gente, é transformadora e capaz de constituir empatia, vínculo e compreensão do momento extremo em que vivemos.
Compreender que transformar esta realidade em direção à equidade, em defesa da vida, é responsabilidade coletiva e compartilhada, é urgente. Ao mesmo tempo, reconhecer a força de quem vive nestas condições, a resiliência e a capacidade de encontrar soluções e até a beleza em meio a tanta privação e precariedade, indicam caminhos possíveis de construção de alternativas sistêmicas, locais e transformadoras.
Importa dar atenção a como vivem crianças e mulheres em nossas cidades, constituindo registros, recortes do olhar e do sentir nos lugares, entre as pessoas, as mulheres e as crianças. Essa é uma expressão de um desejo de mudança, com urgência no presente.
Sem esse desejo transformado em prática, qual o sentido de nossa existência, de nossos saberes? Precisamos nos recordar que as crianças são o fundamento de nós mesmos. São estas algumas das reflexões, entre tantos registros distintos de experiências de transformação positiva que o livro “Cidade, Gênero e Infância” propõe.
Te convidamos à leitura!