No mês de agosto, aconteceu o lançamento do podcast Caminhos Possíveis, uma série sobre as diversas paternidades brasileiras. Produzido pelo Instituto da Infância (IFAN) com o apoio da Fundação Bernard van Leer, o podcast traz especialistas em áreas como educação e psicanálise para discutir as diferentes experiências de paternar – e como elas são atravessadas por indicadores raciais, socioeconômicos e de gênero.
O educador Humberto Baltar foi um dos convidados do podcast, trazendo sua perspectiva sobre paternidades e infâncias. Humberto é idealizador do coletivo Pais Pretos Presentes, grupo de apoio para pais e mães negros que incentiva trocas e acolhimento na experiência de criar crianças negras em um país histórica e estruturalmente racista como o Brasil.
“Somos um país com mais de 54% da população negra, mas com poucos espaços para discutir o que significa ser um pai negro e criar uma criança negra. O coletivo Pais Pretos Presentes atua com estratégias de aquilombamento e letramento racial para criar outras referências de parentalidade”, explica Humberto. O conceito de aquilombamento remete a um grupo de afeto, acolhida e compartilhamento de conhecimentos, enquanto o letramento racial é a busca de emancipação de pessoas negras a partir de uma perspectiva de pensamento decolonial
A Urban95 convidou o educador para um papo sobre os desafios e potências de pensar paternidades negras e sua relação com a primeira infância. Confira!
Como surge o coletivo Pais Pretos Presentes?
Surgiu quando soube que seria pai. Minha esposa deu a notícia um dia antes do Dia dos Pais em 2018. Fiquei feliz, mas depois bateu uma angústia. Tinha dúvidas de como empoderar meu filho racialmente, e também sobre como ser um pai ativo e afetuoso. O meu foi um pai provedor, que me sustentou e me deu educação, mas nossa relação não tinha uma dimensão afetiva.
Perguntei no Facebook se alguém conhecia um pai preto presente. A pergunta viralizou, e os pais com quem eu me comuniquei compartilharam relatos fortes, que dizem muito sobre parentalidades e infâncias negras. Um pai compartilhou que seu filho de apenas quatro anos não queria ir para escola, porque outra criança disse não gostar de pessoas negras; outro pai, enlutado, se sentia invisibilizado e sem apoio para lidar com a morte precoce de sua filha. Foi então que surgiu a ideia de criarmos um grupo de apoio.
O projeto desde então ganhou uma proporção enorme, com canais no Instagram, Facebook, e também os grupos de Whatsapp. A principal mensagem deste coletivo é dizer que nenhum pai deve se sentir isolado, ou encarar sozinho os desafios da formação e da criação de um filho ou filha. Trabalhamos por uma paternidade mais inclusiva, amorosa, onde seja possível aprender com a experiência dos outros.
Como nós no Brasil discutimos as paternidades e as paternidades negras?
Primeiro é preciso ressaltar que temos tentado utilizar a expressão parentalidades, e não paternidades. Existem pessoas trans e não binárias que têm filhos, então não podemos fechar esta perspectiva de cuidado na cultura do masculino.
Respondendo à sua pergunta, temas como parentalidade ou disciplina positiva são pouco difundidos. O que é comum é a visão cultural de que, para ser homem e pai, o homem tem que corresponder aos três Ps: Protetor, provedor e procriador. Não se discute seu papel de cuidador, e nem outros modelos de paternidade e masculinidade. Isso não está pautado nas políticas públicas, e as discussões que acontecem são fruto de trabalho de formiguinha de coletivos e projetos independentes.
Quando adicionamos a questão racial, o debate é ainda mais reduzido. Quando penso em paternidades negras no Brasil, penso que ser um pai negro é conviver com a incerteza, com a impossibilidade de criar meu filho, de ver ele crescer ou de estar vivo para vê-lo crescer. Penso também que a criança negra é atravessada pelo racismo desde sua primeira infância, e que isto tem efeitos na sua autoestima, autoimagem e psique.
Não quero preparar meu filho para sofrer racismo, e sim para se respeitar, se empoderar e se amar. Para isto, é preciso buscar outras referências de parentalidade e infâncias que não as da cultura ocidental.
Estas referências têm a ver com o letramento racial? Você pode falar mais sobre elas?
Letramento racial é a busca de emancipação de pessoas negras a partir de uma perspectiva de pensamento decolonial. Buscamos na ancestralidade negra outras referências de família e de primeira infância.
Como as Áfricas enxergam a criança e a parentalidade? As Áfricas veem a criança como alguém que chega pronto ao mundo, com inclinações, dons, vocações, e que não precisa ser moldado. Com relação às novas configurações de família, no povo Dagara, que hoje habita o território da Burkina Faso, os papéis de gênero não são tão fixos: em geral, mulheres buscam os mantimentos e os homens ficam em casa, cuidando de seus bebês no sling.
Quando nos propomos a olhar para outras referências que não as ocidentais, sabemos que são possíveis outras parentalidades. A cultura africana é pluriversal, com milhares de idiomas e jeitos de se relacionar, e isso nos faz pensar que, no coletivo e no cotidiano, um pai hétero e cis pode estar trocando com um pai trans ou com um homem que não é pai mas quer paternar, porque paternar significa acolher e amar, e não necessariamente gerar um filho biológico.
Quais as discussões sobre primeira infância que acontecem no coletivo Pais Pretos Presentes?
Muitas das discussões acontecem a partir de relatos das mães negras. Recebemos relatos de mulheres que sofreram violência obstétrica, ou que deram à luz sem uma rede de apoio. Quando existe um companheiro, muitas vezes não existe empatia com relação ao puerpério. Então tentamos sempre pegar estes pais pela mão, conversar com eles, oferecer apoio e letramento racial e emocional.
Com relação à atenção à criança pequena, sabemos os efeitos na autoestima, autoimagem e psique da criança negra. Então, resgatamos a autoestima por meio do letramento racial. Oferecemos referências de brincadeiras – como as bonecas Abayomi, referências literárias e de filmes. Mostramos as muitas Áfricas e suas riquezas para que estas crianças sintam orgulho de pertencer a este eixo civilizatório.