Mas, afinal, escola pra quê?

13/06/2022 Imprensa Ecoa Uol

No chão da escola a disputa por um brinquedo, um pedido de desculpas após um puxão de cabelo, árvore que vira nave espacial, pedra que contém a fonte do poder contra o mal, lanches e fantasias compartilhadas. São experiências como essas, que acontecem todos os dias nos centros de educação de todo o país, que ampliam os repertórios e as visões de mundo que constituem a subjetividade da criança. É no contorno das relações lúdicas de interação que a aprendizagem acontece.

Em uma sociedade que vive em caixinhas cada vez mais segregadas — dos espaços aos grupos sociais, passando pelo acesso à direitos e hábitos culturais — poder conviver com a alteridade, constituir elos apesar das diferenças e potencializar o que há em comum é revolucionário. Afinal, a que serve a tecnologia se não for à nossa humanidade? A que serve a ciência se não for para fazer do mundo um lugar melhor para todas as pessoas?

Projeto Motoca na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo. Crédito: Reinaldo Canato/UOL

O artigo 205 da Constituição Federal garante o papel compartilhado da família e do Estado frente à educação das crianças. No âmbito privado acontece a socialização primária, aquela que se dá na intimidade de cada família e apresenta uma certa estabilidade dos atores e papéis, com a função de transmitir os primeiros valores e princípios ao ser humano.

Na educação escolar o indivíduo ultrapassa a redoma de seu lar para experienciar a vida na esfera pública. É lá que temos a oportunidade de, em um espaço de segurança, aprender sobre a convivência na coletividade, respeito às individualidades e princípios como democracia e participação social.

Ao mesmo tempo, uma educação pública, de qualidade e para todos, é a melhor forma de promover a equidade e diminuir o fosso da desigualdade social. Não à toa, no Brasil é atribuído ao poder público um papel único na institucionalização dos direitos, pois é ele o único capaz de assegurara unidade no acesso, conteúdo e qualidade das políticas públicas ao longo do nosso extenso território. Uma série de legislações protegem os estudantes brasileiros e garantem esse como um direito fundamental da criança.

Crianças entregam flores na praça da República, centro de São Paulo. Crédito: Reinaldo Canato/UOL

Há décadas grupos de famílias questionam a obrigatoriedade da escolarização no país. Em 2019, surgiu a proposta de regulamentar a educação domiciliar no Brasil, o homeschooling, seguindo diversos Projetos de Lei apresentados na Câmara dos Deputados ao longo dos últimos 20 anos.

De acordo com a Associação Nacional da Educação Domiciliar, cerca de 7.500 famílias adotam o homeschooling no Brasil. Os motivos para tal escolha são diversos, como a
facilidade para famílias nômades, questões de segurança, restrições religiosas, uma
experiência traumática com a escola ou a insatisfação com o modelo massificado de
educação.

Durante a atual legislatura, o tema se tornou também prioridade política, envolvendo até mesmo a necessidade de um posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Quando a pauta da educação domiciliar seguiu finalmente para a votação na Câmara dos Deputados, o Conselho Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, a Rede Nacional Primeira Infância, UNICEF, UNESCO e mais de 400 entidades especializadas posicionaram-se contra a regulamentação, por a entenderem como uma ameaça aos direitos constitucionais das crianças como prioridade absoluta.

São nas escolas que grande parte dos abusos e casos de violência são denunciados
primeiro e também nestes espaços que as crianças contam com outras visões de
mundo diferente daquelas de suas famílias. Elas necessitam de contato cotidiano com seus pares para que se desenvolvam de forma saudável e de profissionais especializados, com formação adequada que nem sempre seus pais e mães têm, ou podem contratar alguém que tenha.

Enquanto a regularização da educação domiciliar tramita no Congresso, as crianças
brasileiras continuam à espera de uma melhoria no acesso e qualidade de educação. Em especial aquelas que estão em seus primeiros anos de vida e necessitam de cuidados específicos e muito preciosos para seu desenvolvimento até a vida adulta.

A última estatística da PNAD, realizada em 2019, indicava entre as crianças de 0 a 3 anos uma taxa de escolarização de 35,6%, número que subiu cinco pontos percentuais na comparação com 2016. Já a pré-escola, frequentada por crianças de 4 a 5 anos, alcança a taxa de 92,9%. O Plano Nacional de Educação estipulou como sua primeira meta a universalização da educação infantil na pré-escola até 2016, e 50% de cobertura para as creches até 2024, que pela linha de evolução não será atingida no prazo.

Em paralelo à tentativa de incluir a educação domiciliar entre as práticas dos brasileiros, o governo federal instituiu políticas controversas e problemáticas, como a Política Nacional de Educação Especial e a Política Nacional de Alfabetização. Também tentou-se criar um voucher condicionado ao Auxílio Brasil para o pagamento de creches particulares, mas o projeto não passou no Congresso. O acesso à creche permanece obrigação do poder público.

É preocupante a sequência de tentativas de terceirizar os deveres do Estado para as
famílias, de desmontar políticas validadas e construídas por muitas mãos. Especialmente no contexto de intolerância e desigualdades tão extremas como no Brasil, a escola garante, dentre muitas coisas, um caminho de formação, uma fonte de alimentação balanceada e proteção contra vários tipos de violência.

Esse artigo contou com a colaboração da pedagoga Isabella Gregory, que desde 2008 estuda metodologias de participação infantil no contexto escolar e os efeitos da tecnologia. Já trabalhou na Rede Nacional Primeira Infância e, desde 2015, compõe a equipe do CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular. Gosta muito de planilhas e passeios sem rumo. É papa-goiaba orgulhosa (natural de Niterói-RJ) e mãe do Eric.