Jornada da infância: o atendimento integral da primeira infância

Heloisa Oliveira participa do webinar da Rede Urban95 (Crédito: Arquivo Pessoal)

Um município com uma rede integrada e intersetorial estará mais equipado para lidar com os desafios dos territórios e também para garantir os direitos da primeira infância.

Conversamos com Heloisa Oliveira, que tem uma longa trajetória na gestão de organizações que atuam no campo da primeira infância e defendeu a importância da intersetorialidade e das políticas públicas integradas para a eficácia de programas e projetos. Confira a seguir:

Para começar, gostaria que você falasse sobre o conceito de “jornada da infância” e qual a importância desse processo para a primeira infância.

Heloisa: A vida da pessoa é uma grande jornada, que começa na gestação e vai até a velhice, a idade mais avançada. Essa primeira etapa, compreendida na primeira infância, pode ser fracionada. Você tem a jornada dos primeiros mil dias, que começa na gestação, compreende o primeiro e o segundo ano. Se você olhar isso como um grande caminho que está sendo percorrido pela pessoa, você consegue enxergar melhor como os serviços precisam estar disponíveis para ela.

Do ponto de vista do gestor, da política pública, é preciso o mínimo de planejamento para garantir que os serviços vão estar aparelhados e capacitados para prestar esse atendimento. Não podemos olhar as famílias como clientes, a família da saúde, a família da assistência social, pois uma mesma pessoa demanda todos esses serviços, muitos deles simultâneos.

Qual é a importância da intersetorialidade considerando as necessidades muito específicas em cada período?

Heloisa: Programas de atendimento básico precisam estar integrados e adequadamente referenciados com as famílias. Elas também precisam saber a que serviço se dirigir. Muitas vezes, numa cidade maior, que tem mais de um ponto de atendimento daquele serviço, a família não está especificamente orientada a qual se dirigir.

Outra questão importante é, ao receber uma família que vai ter um bebê, que todas as informações sejam dadas para essa mãe, para essa família, sobre exames, sobre nutrição. Se nas últimas semanas ela não tiver tomado uma série de providências, de cuidados, que possamos responder a tempo para reverter o caso.

Uma mãe adolescente entra no serviço de pré-natal, e as perguntas precisam ser feitas: está na escola? O que vai fazer? Tem que ter comunicação com a escola, um programa para que essa menina não se afaste dos estudos. Porque se ela se afastar da escola, é mais uma família pobre ali na frente. A gravidez precoce é multiplicador de pobreza, porque as mães se afastam da escola, mudam seu projeto de vida, sua jornada é totalmente alterada.

Tem dois aspectos importantes de que você fala, a comunicação e a agilidade, esta última complexa na gestão pública. Como as cidades podem melhorar nesse atendimento?

Heloisa: O que significa uma gestação? São 40 semanas. Uma semana passa muito rápido. Quando se tem a comunicação de uma gestação, já podem ter passado de 8 a 12 semanas. Só sobram 28 semanas para tomar todas as providências. Isso muitas vezes escapa na hora de falar sobre os cuidados, a questão da agilidade, do timing.

Grande parte dos problemas de mortalidade por causas evitáveis estão ligados a pequenas coisas que, com uma informação adequada, podem ser evitadas. Esses instrumentos que fazem parte dos programas de governo, como a caderneta da criança, são bons, são completos, mas muitas vezes a mãe não sabe ler com segurança. Precisaria que alguém passasse a orientação, mais do que só entregar a caderneta na mão. O serviço tem que estar preparado, tem que ter todo um reforço de comunicação.

A medicina de família é muito importante porque pode interceder na residência, ir até a família entre as consultas. Estamos falando de famílias que talvez não tenham condições de buscar ativamente este conhecimento?

Heloisa: A gente acha no Brasil que ter um programa de governo nacional de cuidado é suficiente, mas a gente esquece de um detalhe. A pessoa não vive na federação, na União, a pessoa vive já na comunidade. A gente precisa olhar, e por isso a Urban95 tem um trabalho importante, o ponto de partida, o papel da saúde nisso, porque ali você consegue garantir que a criança vá passando por essas fases com a garantia de que aquele pedacinho da jornada está bem encaminhado. Que aquele atendimento certeiro vai permitir que ela siga caminhando bem na jornada da criança.

Eu estou na última etapa da minha jornada, que eu espero que seja longa, e sou o resultado de uma grande jornada, onde fui cuidada pelos meus pais, professores, depois por mim mesma. Enfim, a gente é resultado da história construída ao longo de uma grande jornada.

Para uma mãe que tem uma família, acesso a cultura e educação, é razoavelmente fácil garantir as oportunidades para a jornada dos primeiros anos. Mas para quem está fora do acesso, é mais difícil oferecer isso aos próprios filhos. O grande desafio talvez seja transformar o círculo vicioso em virtuoso, em relação ao conhecimento, acesso da família e o que ela consegue ofertar à criança?

Heloisa: Hoje, principalmente agora depois da pandemia, que acentuou as desigualdades sociais, os desafios não são poucos. Precisamos entender quem é o público prioritário da política pública. Deve ser quem mais precisa delas, esses devem ser priorizados, e estou falando das famílias mais pobres.

Família pobre não é apenas a que não tem renda suficiente. A pobreza precisa ser entendida na sua real dimensão. Uma casa sem água, sem saneamento básico, uma casa sem condições de moradia, uma família que não tem acesso ao serviço de saúde, a educação, é uma família pobre. Por isso a política não pode ser tratada de forma diferente.

Ao olhar a pobreza só pela faixa de renda eu não consigo enxergar quais são os desafios daquela família. É muito importante que tudo seja pensado sob a lógica de uma pessoa que demanda diferentes serviços. Esses serviços dependem da etapa da jornada que essa pessoa está vivendo e da condição socioeconômica que ela tem. Essa condição vai determinar quais serão seus maiores desafios.

É uma situação complexa, um tema com muitos lados.

Heloisa: Eu diria que não é uma questão complexa, é uma questão do jeito de olhar. As políticas públicas nacionais preveem essa assistência, mas muitas vezes o poder público não conhece todos os desafios das comunidades em sua área de gestão, e por isso não conhece as formas de atender a esses desafios. Além de olhar para a jornada, você precisa organizar os serviços de forma a atender o que aquela comunidade precisa.

Muitas vezes as mães não querem a creche porque está longe da casa delas. Bom, então a creche está no lugar errado. Se a creche estiver perto das famílias, ela vai atender muito melhor. A forma de olhar pode mudar tudo. E tudo começa por conhecer melhor as realidades, principalmente das áreas mais vulneráveis de cada município.

A própria Urban95 tem projetos e ferramentas de mapeamento. Fazendo o mapeamento das famílias, o trabalho seguinte é identificar onde precisa ter um posto de saúde, uma creche ou um CRAS para atender melhor aquelas famílias.

E onde está o maior potencial do uso de dados no atendimento à família?

Heloisa: O georreferenciamento da população é fundamental para avançar nesse tipo de atividade, organizar e integrar serviços. É pré-requisito, mas não é suficiente, assim como alertas de risco não são suficientes. Avançamos com a vontade política e um olhar de integração, de que estamos falando de uma mesma pessoa, uma mesma família, detentora dos mesmos direitos. Assim entendemos que os serviços devem estar disponíveis ao mesmo tempo e dentro da mesma estrutura de governo.

A estratégia de saúde da família, se bem orientada nessa questão da integração do atendimento, é fundamental, porque tem a capilaridade. Se há georreferenciamento e uma estratégia da saúde da família bem estruturada, você pode fazer as coisas serem utilizadas de forma que até as semanas da gravidez sejam melhor cobertas pelos serviços. Temos de aproveitar ao máximo esses instrumentos para entregar os serviços no tempo certo.

Normalmente a gente fala que um prefeito tem um papel fundamental. Uma gestão municipal são dois terços da primeira infância. Se você falar dos mil dias, eles cabem dentro de uma gestão. Para o bebê que acabou de nascer, não adianta o que vai ser feito daqui quatro anos, importa o que está sendo feito agora.

Para avançar no debate, o Webinar “Trajetórias da primeira infância: um olhar integrado para os serviços” acontecerá no dia 23 de março, das 9h às 10h30. Com o objetivo de apoiar os municípios da Rede Urban95 na concepção e implementação de serviços para primeira infância, este webinar discutirá como a intersetorialidade entre serviços é fundamental para prevenção e fortalecimento de vínculos entre cuidadores e crianças.

O encontro virtual será conduzido pelo CECIP e terá como convidadas:

Heloisa Oliveira: Economista e diretora do Instituto Opy, Heloisa irá compartilhar conosco um resgate histórico do papel da intersetorialidade na qualidade de vida e acesso aos direitos da primeira infância.

Ana Sofia: A diretora geral de Políticas Estratégicas do programa Mãe Coruja mostra na prática como uma experiência intersetorial exitosa garante os direitos das gestantes na rede estadual de Pernambuco.

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