O momento pede atenção à saúde das crianças. Dados medidos durante a pandemia de Covid-19 apontam que a prevalência de sintomas de ansiedade e depressão infantil dobrou, chegando a um percentual de 25,2%. Segundo especialistas, parte importante da causa está na redução do contato com a natureza – o número de crianças que brincavam ao ar livre uma vez por semana caiu de 50% para 34%, no Brasil. A boa notícia é que o tratamento é a própria cidade. A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda acesso diário a ambientes verdes e naturais, acolhedores e seguros, onde seja possível brincar livremente por pelo menos uma hora. É tarefa do poder público e das gestões municipais estimular o desemparedamento.
Na opinião do pediatra e sanitarista Daniel Becker, a pandemia agravou um problema que já enfrentávamos no contexto das infâncias urbanas e que só será remediado com investimento na primeira infância, em políticas públicas e na garantia de direitos. “Vivemos em uma sociedade desigual e injusta, em que as pessoas têm pouco tempo fora das extensas jornadas de trabalho, pouco acesso a áreas verdes próximas de casa e vivem com medo da violência. A resposta é emparedar as crianças e recorrer às telas, o que traz prejuízos importantes à saúde e uma epidemia de hipermedicalização”. As consequências envolvem atraso no desenvolvimento, deficiência de linguagem, problemas de sono e memória, déficit de atenção e hiperatividade.
Para Daniel, é preciso ter um olhar específico para a infância nesse momento e garantir as condições necessárias para recuperar as perdas de desenvolvimento e de saúde psíquica, emocional e mental deste período, que ainda estamos atravessando. Um passo fundamental é desconfinar as crianças e devolver a elas o direito ao livre brincar. “É preciso cultivar uma urbanidade de melhor qualidade. Investir em cidades voltadas para as famílias e em ambientes acolhedores que estimulem atividades externas. A natureza é o melhor lugar para uma criança brincar e a brincadeira é a melhor atividade para ela. Verdejar as cidades melhora a qualidade de vida em múltiplos sentidos”.
A coordenadora das áreas de cidade e educação do programa Criança e Natureza, Paula Mendonça, concorda com a prescrição: “Natureza, na infância, sempre foi saúde e, nesse momento, é também remédio. Tem um papel restaurativo fundamental e é muito importante retomar e ampliar esse contato”. Paula chama atenção para o papel dos espaços naturais no desenvolvimento integral infantil. “A natureza sempre foi palco do desenvolvimento humano e de todas as nossas habilidades físicas e emocionais. A diversidade de espécies, formas e de fenômenos favorece o desenvolvimento cognitivo pela curiosidade, como um laboratório investigativo. E acolhe a diversidade de ritmos das crianças”.
Ideias para desemparedar e trazer a natureza para o dia a dia
Se a receita é desemparedar, como podemos fazer diferente e garantir o direito das crianças à cidade e à natureza? Para Paula, o fundamental é que os espaços verdes façam parte do cotidiano, o que, para muitos, ainda não é uma realidade. Em pesquisa recente que ouviu mil famílias em todo o Brasil, 42% dos entrevistados disseram não ter uma área verde adequada próxima a suas casas. É urgente, portanto, que os ambientes naturais sejam bem distribuídos entre os bairros, planejados e conservados de modo a permitir que as crianças os frequentem diariamente.
A estratégia mais eficiente inclui uma resposta sistêmica, com responsabilidades compartilhadas e participação da comunidade e dos diversos atores da gestão pública. É importante que diferentes setores estejam envolvidos – saúde, educação, assistência social, esporte e lazer, desenvolvimento urbano e meio ambiente – colaborando e pensando juntos propostas coletivas que priorizem os direitos das crianças e acolham seus cuidadores.
Ações integradas resultam em iniciativas como os micro parques naturalizados Seu Zequinha e José Leon, em Fortaleza (CE), cidade que faz parte da rede Urban95. Desenvolvidos a partir de um projeto intersetorial pioneiro no país, os parques verdes e multifuncionais, que revitalizaram áreas esquecidas e degradadas, foram concebidos com participação popular e têm a proposta de servir de modelo para outros 40 espaços.
Esses espaços verdes se conectam com escolas e outros equipamentos públicos frequentados pelas crianças no dia a dia, para que as famílias não sejam as únicas responsáveis pelo contato direto e frequente com a natureza. “As necessidades infantis precisam ser priorizadas nos instrumentos municipais de planejamento. Uma cidade boa para as crianças é uma cidade boa para todos e a responsabilidade de cuidado, proteção e promoção de uma boa infância é de toda a sociedade e das instituições”, lembra Paula.
Cidades mais verdes: por onde começar
Por Paula Mendonça*
Cinco pontos essenciais para o poder público começar a priorizar a conexão das crianças com a natureza:
1. Aumento e distribuição de áreas verdes e espaços naturais na cidade
É fundamental garantir ambientes com biodiversidade como parques e praças, bem cuidados e de fácil acesso, em todos os bairros. Para que o contato com a natureza faça parte do cotidiano, é importante que as famílias possam chegar a estes espaços a pé e frequentá-los sem preocupações em relação a segurança, comodidade, conservação e limpeza.
2. Segurança viária e planejamento de trajetos e caminhos
Para que os trajetos sejam parte da vivência ao ar livre, é preciso planejar os caminhos para permitir segurança e autonomia: As ruas são seguras e sombreadas? As calçadas são acessíveis para pessoas com deficiência, idosos e cuidadores com carrinhos de bebê? Há bancos e pontos em que seja possível parar, se necessário? As sinalizações de perigo na malha viária estão na altura da criança?
3. Esverdeamento dos equipamentos públicos
Escolas, CRAS, unidades de saúde e demais equipamentos públicos frequentados pelas crianças e seus cuidadores podem ser aliados importantes para garantir os benefícios do contato com a natureza, investindo em áreas verdes e elementos naturais nos pátios e espaços internos de convivência e lazer.
4. Planejamento intersetorial
A formação de grupos intersetoriais de planejamento é um ponto chave para a construção de cidades mais verdes e amigáveis, que priorizem as necessidades das crianças em seu plano diretor e incluam o direito à natureza no Plano Municipal pela Primeira Infância. Um planejamento integrado permite uma visão global das necessidades e mais eficiência na distribuição dos orçamentos.
5. Participação infantil
Espaços de escuta e participação infantil fomentam a formação cidadã e permitem às crianças compartilhar seus desejos, fazer parte dos processos de decisão e sonhar a cidade onde vivem, desenvolvendo um sentimento de pertencimento.
*Paula Mendonça é coordenadora das áreas de cidade e educação do programa Criança e Natureza